Portal Aprendiz – Revista Gestão Universitária – 25/04/2016 – Belo Horizonte, MG
Há uma velha frase, uma antiga crença, de que a educação pode mudar o mundo. Não há dúvida que o conhecimento é transformador, mas cada vez mais, experiências têm mostrado que a escola – sozinha – dificilmente conseguirá completar essa ampla e complexa tarefa. Ou como resume o educador português que vive e trabalha no Brasil, José Pacheco, em uma carta enviada a Agostinho da Silva:
“Sabias que escolas são pessoas, comunidades feitas de pessoas, que aprendem umas com as outras. E que o desenvolvimento dessas comunidades depende da diversidade de experiências das pessoas que as integram, bem como requer que todos os membros que as constituem se envolvam num esforço de participação, da produção conjunta de conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente.”
Essa compreensão também apoia um dos pilares constituintes dos Territórios Educativos: escolas que se reconhecem como agente de transformação do território. Na opinião da socióloga Helena Singer, autora da coleção Territórios Educativos, ”é importante ter uma escola que assume essa vocação e se reconhece com o território, que o vê como campo de pesquisa, currículo, lugar de estudo, que se envolve com as questões locais e propõe a ajudar na sua transformação”.
Na periferia de Natal (RN), no bairro de Felipe Camarão, a Escola Estadual Clara Camarão, tem descoberto nessa conexão uma força para transformar a realidade de seus jovens.
Desde 2003, a instituição atua em parceria com o Conexão Felipe Camarão, projeto que busca, no contato com mestres e griôs das tradições da capoeira, boi de reis, rabeca e teatro de bonecos, transformar a realidade local. “A gente trabalha nesse bairro esquecido pelo poder público e a escola tem um papel fundamental na transformação dessa comunidade. Se ela se abre, abarca as demandas e se torna um espaço, se ela consegue trazer a comunidade para dentro de si, ela vira essa gotinha de transformação no oceano, uma referência para a população”, afirma Rosângela Filgueira, gestora da Clara Camarão.
Segundo a educadora, esse trabalho da escola “mudou a visão dos jovens sobre o bairro e sobre si mesmos” e trouxe à tona saberes e culturas que antes ficavam em segundo plano na vida da comunidade. “Muita gente antes não sabia dessa riqueza dos mestres aqui nos bairros e as crianças se encantaram com isso. Elas passaram a saber deles, a procurá-los. O resultado é esse: hoje eles estão na universidade, se formando. E você fica maravilhada de ver aqueles meninos, que você viu pequenos, voltando para cá como professores. Isso é de uma riqueza sem tamanho”, se emociona a educadora.
E não é por menos: ancorada no território, a emancipação se traduz na volta desse estudante, desta vez como professor, buscando protagonizar uma nova etapa na vida de sua comunidade.
Escolas transformadoras
“A escola está cada vez mais universalizada. E por mais que reconheçamos o papel dos diferentes atores na formação de sujeitos, tem um lugar que compete à escola”, defende Ana Cláudia de Arruda Leite, diretora de Educação do Instituto Alana, que coordena o projeto “Escolas Transformadoras”, que localiza, conecta e valoriza instituições de ensino que contribuem para a transformação da realidade brasileira.
Com 12 escolas já identificadas em 6 estados do país, desde setembro de 2015, o projeto busca fortalecer a noção de que é possível interferir em realidades locais através de uma educação que se propõe transformadora. Para isso, buscam escolas que tenham em sua prática competências como empatia, trabalho em equipe, criatividade e protagonismo social. Ou seja, instituições educativas com “capacidade de tomar iniciativas para a transformação da realidade social, buscando engajamento e participação de seu entorno”.
Ana Cláudia reconhece que, mesmo em pouco tempo, o potencial de incidência dessas escolas chama atenção. “Vemos muitas escolas com o interesse forte de pensar o ‘além muro’, o diálogo com outras escolas, em se engajar em projetos que querem mudar a realidade do país”, completa. Dentre as experiências já identificadas, a gestora destaca a questão do protagonismo da comunidade, dos estudantes e de entender a educação como um ato coletivo. “Temos encontrado escolas que estão comprometidas com a emancipação, com práticas pedagógicas que fortalecem o exercício da democracia”, revela.
Força comunitária
A escola comunitária Dendê da Serra, localizada no município de Serra Grande, em Uruçuça, no litoral sul da Bahia, é exemplar dessa trajetória. Localizada em uma área de proteção ambiental, em meio a remanescentes de Mata Atlântica, a escola observou, nos últimos quinze anos, uma acelerada transformação socioeconômica, típica de locais com vocação turística. Segundo Égila Passos, gestora de comunicação da instituição, ”a região sofre com especulação imobiliária, urbanização desordenada, desconfiguração cultural de comunidades tradicionais, e com a substituição abrupta de atividades econômicas, situação que afeta as crianças diretamente”.
De vocação comunitária, a escola busca um diálogo com essa realidade para diminuir as desigualdades sociais. Partindo de uma abordagem Waldorf, a escola mistura alunos de diferentes classes sociais e orienta sua ação educativa para garantir o desenvolvimento integral do ser humano, misturando conteúdos tradicionais com habilidades diversas, tais como trabalhos manuais, arte em madeira, música, teatro, jardinagem e agricultura ecológica.
“É possível desenvolver uma ação educativa que exercite o respeito e a integração dentro da diversidade, valorizando as potencialidades, o que cada aluno traz em sua ‘bagagem’ e o que tem a oferecer. A transformação passa por colocarmos em prática essa convivência, trabalhando o diálogo fraterno, a aceitação e um entendimento saudável e amoroso do que é ser humano”, aponta Égila.
Para Ana Cláudia, esse caminho de “desenvolver ações educativas” baseadas no contexto local é imprescindível para uma formação de qualidade. “Não existe, portanto, uma escola perfeita. O que temos são aquelas que, mesmo com os desafios e fragilidades, levam adiante a necessidade de um projeto pedagógico com autoria, ou seja, construído e pensado por uma equipe, por uma comunidade e por seus estudantes como um sistema em eterna construção.”
Essa busca de uma identidade, completa ela, “caminha na contramão dos sistemas de ensino, apostilados e padronizados”. Prevista na Lei Nacional de Diretrizes e Bases (LDB), “essa autonomia, quando exercida, faz com que a escola deixe de ser um prédio e exista como um espaço vivo dentro da comunidade”.
Espaço vivo da cidade
“Eu sinto que há uma urgência, nas cidades, de pensar em espaços de troca e de convivência. E isso têm tudo a ver com pensar uma Cidade Educadora”, projeta o educador André Gravatá, que organiza há dois anos a Virada Educação. Iniciada com uma série de atividades em um final de semana no centro de São Paulo, ela tem se espalhado por todo o país, tentando dar conta desta urgência.
Apostando que tanto a escola quanto seu entorno têm muito a ganhar com a troca e aprendizado, a Virada busca ampliar os espaços socialmente legitimados para a educação. “Quando a escola abre as portas, consolidando essa mão dupla com o território, no qual tanto as pessoas entram para aprender, quanto os estudantes para sair, a educação se torna um ato transformador.”
Neste momento de descrédito com a política, acredita Gravatá, esse movimento se torna fundamental. “Quando uma aula, mesmo que seja uma aula tradicional, acontece numa praça, ela é necessariamente política, porque ela faz a pessoa em desenvolvimento perceber que ele não é só estudante: ela também é vizinho, é criança, é irmã. Ela se enxerga em sua pluralidade. E quando isso acontece, eu sinto que isso potencializa perspectivas, isso cria capacidade de intervenção não só onde elas vivem, mas também em suas vidas.”
Essa noção transborda no entusiasmo de Victhor Vieira, de 17 anos, que estuda na Escola Estadual Caetano de Campos, localizada nos arredores da Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Após participar das duas edições da Virada, Victhor vê a educação com outros olhos. Assim como o espaço público que circunda a escola.
“Eu vejo que a gente não precisa ficar na escola para aprender. Na rua, a gente pode aprender diferente, na prática. Acho que a Virada mostrou que todo mundo tem algo a ensinar. Com isso, a gente acordou e viu que era capaz de fazer o que nós gostamos. Hoje, eu toco em orquestra graças à isso, graças ao André ter entrado um dia lá falando de coisas que a gente não estava acostumado”, finaliza.