7 de julho de 2022

INTRODUÇÃO DO LIVRO RITOS DE PASSAGEM

INTRODUÇÃO DO LIVRO “RITOS DE PASSAGEM” (revista em2022)

Vi em sonho e já vi na vida.

Proquê tem sonho que a gente vê que não é… É que nem conversa! Não tem conversa que a gente diz por brincadeira?

Sonho, então, é… Acho que uns é brincadeira. Mas outros sonhos a gente vê que é certeza mesmo.

 E esse sonho pra mim era certo. Era tão certo que eu entendi ele como um aviso que vinha. Sempre sonhava, sempre… Sempre…

 Depois nunca mais sonhei nesse causo.

Quando eu mais moço, eu sonhava muito andando por terras estranha. Andando em terras estranha e entrava em casas grande que não tinha mais tamanho.

Sim! Uma casa muito grande… Na viagem memo que eu ia, eu entrava naquela casa sem eu esperá.

 Parecido que era noite. Daí por diante… ficava lutando pro mode saí.

Ficava assim me jogando sem sabê da saída. Num sabia vortá, mas que me preocupava sempre. Ia numa porta… Ia na outra… Achava uma fechada… Outra… Lutava… Mas, sempre, por fim… sempre eu achava uma porta que dava pra eu saí e saía fora. Nunca eu fiquei trancado. Eu achava uma saída. Atravessava[1].

[

É preciso escrever um livro para entender o que a introdução é a última parte a ser escrita.     Depois de enfrentar e atravessar as inúmeras etapas e os múltiplos desafios propostos pela obra é possível descortinar o panorama do que foi realizado. Mesmo tendo um projeto muito claro no início, escrever é “andar em terras estranhas”. No caminho, entra-se em casas grandes e de difícil saída. Só ao final é possível reconstruir a travessia.

No presente caso, isso já pode ser exemplificado pelo título deste livro. A nomeação Ritos de passagem surgiu na fase de projeto. A princípio, o título tinha a ver com uma idéia de organização e de estilo para o texto. Pensava-se, então, a partir de uma determinada concepção pedagógica (ver capítulo 6)1, que a sequência dos textos deveria ser organizada em forma de ritos que possibilitassem ao leitor um clima de mistério e de desafio em toda a obra. Ressonâncias simbólicas deveriam emergir, permanentemente, de cada fragmento do texto.

   Assim, o livro teria o formato de um rito descrito. Um rito de passagem da gerência convencional para a gerência de pessoas. Um “missal” da gerência em transformação. Tal projeto de organização e estilo mostrou-se pouco adequado ao conteúdo.

Mantidos o título e a concepção pedagógica de fundo, uma segunda perspectiva foi a de suscitar a “ressonância simbólica” e veicular símbolos ligados ao conteúdo através da arte. Os ritos de passagem seriam, então, localizados entre os capítulos e consistiriam na solicitação, ao leitor, de que assistisse a determinados filmes, ouvisse determinadas músicas ou lesse certos poemas. Para ter uma idéia da proposta, o leitor deveria assistir ao filme Tempos modernos antes de começar o primeiro capítulo. Antes do segundo, ao filme Feitiço do tempo. Antes do quinto capítulo, a Viver de Akira Kurosawa. Finalmente, antes do sexto capítulo, aos filmes: Uma segunda chance, Ensaio de orquestra e 2001, uma odisséia no espaço2.

Essa segunda perspectiva já era mais exeqüível, mas fundar o texto em uma suposta atividade prévia do leitor seria inviável.

Optou-se, então, por uma terceira perspectiva. Inserir uma breve descrição do filme, a letra da música ou o poema no corpo do livro. À parte a sobrecarga de citações, isso permite, ao menos em parte, um jogo entre os dizeres do texto e os múltiplos dizeres que emanam dos símbolos veiculados na obra de arte conectada ao segmento do livro. É evidente que assistir previamente aos filmes e ouvir as músicas amplia as possibilidades de variações nesse jogo de dizeres e de significados. A visão do livro concluído mostra que mesmo esta última opção não foi inteiramente obedecida. Uma redação articulada ou contraposta com filmes, músicas e poemas é visível nos primeiros e último capítulos. Mas nos capítulos intermediários não acontece isso com a mesma intensidade. Ainda que assim não fosse, onde ficam nessa opção os ritos e a passagem?

Percebe-se, ao fim, que tanto no processo (a redação) como no produto (o livro) sempre foi adotado o modelo da viagem. A viagem, enquanto símbolo, nunca se refere a um mero deslocamento tempo e no espaço.

“No sentido mais imediato, viajar é procurar”3. Os mitos relacionados ao símbolo dizem da tensão da busca e das mudanças provocadas pelo envolvimento com o propósito e pelas experiências decorrentes de se lançar na trajetória. Nos mitos, o fim último da viagem é a transformação do próprio personagem que dela participa.

No sentido simbólico, as etapas da viagem e suas vicissitudes são ritos de purificação.

 Entre as etapas, provas e barreiras especiais estão ou são colocadas no caminho do viajante. A forma de superação do obstáculo configura ritos de passagem. A purificação obtida durante a etapa impulsiona o andante e o fortalece para a travessia e esta, por sua vez, o remete a outra caminhada.

A viagem em torno da qual o livro se organiza é uma visão da trajetória da gerência. Uma leitura da evolução da gerência é especialmente focada mesmo quando por meio do contraponto da trajetória do trabalho.

 Os dois primeiros capítulos, “A trajetória do trabalho e da gerência” e “Em direção a uma gestão para a qualidade”, acompanham o deslocar da gerência até as fronteiras da passagem.

 Os capítulos centrais, “O movimento da qualidade total e a gerência” e “A gerência na passagem”, mapeiam mais propriamente a travessia. Assim, o Movimento da Qualidade e a forma de exercício da gerência dentro dele vão ser considerados fundamentais para a ultrapassagem rumo a uma gestão de pessoas.

Os dois últimos capítulos, “Princípios de uma gestão de pessoas” e “Caminhos ou pistas? Os Projetos Re”, procuram visualizar horizontes e direções de caminhada a partir de um olhar já plantado no território da passagem.

A breve descrição do conteúdo do livro esconde uma outra travessia. Aquela que transformou a perspectiva teórica que animava o projeto do livro. O plano original era pensar a gerência de pessoas nos marcos teóricos do Movimento da Qualidade Total. Identificar as consequências da implementação de um programa de qualidade total na gestão de pessoas era um dos objetivos centrais. O outro era instrumentalizar o gerente para tal tipo de gestão. Do ponto de vista do conteúdo, o resultado seria um livro clássico sobre gerência. Só isso já era um bom desafio.

Esses objetivos foram de certa forma mantidos. No entanto, a mesma concepção pedagógica discutida no capítulo 6, pedia uma retrospectiva e análise estrutural do papel gerencial como forma de situá-lo no fluxo do tempo e em relação com a evolução da Qualidade Total. A efetivação da retrospectiva resultou na mudança do referencial inicial.

Não era possível manter-se o enquadre do Movimento da Qualidade Total. Era necessário superá-lo. Mas transcender os limites do mais abrangente e bem-estabelecido paradigma administrativo da atualidade era temerário.

Nesse momento, um parágrafo que sobrou de uma malsucedida abordagem do difícil texto de Diferença e repetição, constituiu uma plataforma salvadora. Ele diz:

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente nesse ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber de nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível4.

A frase animou uma busca de superação. O Movimento da Qualidade Total e o exercício da gerência dentro dele, e a partir dele, passaram a constituir propriamente o espaço da passagem. Exercer a gerência nos moldes delimitados pelo Movimento, do ponto de vista do início do livro, é uma prova a ser ultrapassada, um rito de passagem em direção a uma Gestão de Pessoas para a Qualidade. Assim o título se explica e para chegar nele múltiplas portas foram procuradas, encontradas e, por fim, atravessadas.

O contexto teórico da frase citada, o pensamento de Deleuze e Guattari, influenciou em muito a decisão de ultrapassar os limites do Movimento da Qualidade Total. Em parte, influenciou a elaboração dos últimos capítulos. Poderia ter influenciado mais o livro todo e o transformado, como mostra o seguinte texto:

Para onde vai você? De onde você vem? Onde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem ou do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico…). Kleis, Lenz ou Büchner têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar5.

Para assumir a concepção explícita na citação, no entanto, seria necessário reescrever tudo e adiar a escrita para um distante e talvez inalcançável momento de saber. Outra travessia foi necessária. Assumir a decisão de adiar essa passagem e apresentar um texto que captura apenas um momento da trajetória.

1.  Essa concepção vai ser explicitada no capítulo 6, “Caminhos ou pistas? Os Projetos Re”, em especial no item C, Estimulando a criatividade grupal: o Projeto Recriar.

2.  Referências mais precisas sobre os filmes podem ser encontradas nos capítulos em que são abordados.

3.  Juan-Eduardo Cirlot, Dicionário de símbolos, São Paulo, Moraes, 1984, p. 598.

4.  Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1988, p. 18.

5.         Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, vol. 1, p. 37.


[1] d Fala de um camponês sobreposta às imagens da seqüência final do documentário Ó xente, pois não, que retrata a vida e uma comunidade de trabalho no agreste de Pernambuco. FASE, Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional, Produções Zoodíaco.]

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