Introdução Poética
“O Que Eu Adoro em ti, Não é a tua beleza. A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito. E a beleza é triste. Não é triste em si, Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti, Não é a tua inteligência. Não é o teu espírito sutil, Tão ágil, tão luminoso, – Ave solta no céu matinal da montanha. Nem é a tua ciência Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti, Não é a tua graça musical, Sucessiva e renovada a cada momento, Graça aérea como o teu próprio pensamento. Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti, Não é a mãe que já perdi. Não é a irmã que já perdi. E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza, Não é o profundo instinto maternal Em teu flanco aberto como uma ferida. Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me! O que eu adoro em ti, é a vida”
(Manoel Bandeira, Madrigal Melancólico. In: Poesia Completa e Prosa / O Ritmo Dissoluto. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1995, p.189)
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Uma outra introdução. Depois segue o poema…
Coordenando muitas turmas e um curso de capacitação para docentes de um Programa Educação para o Trabalho, repeti, sistematicamente, um exercício. Pedia aos participantes que representassem, sem falar, “O Caminho do Programa”.
Na encenação, as transformações nos adolescentes participantes deveriam ser evidenciadas na medida em que o Programa fosse sendo “desenvolvido”.
Invariavelmente, mudanças na apresentação pessoal eram utilizadas como indicação das transformações que o Programa objetivava. Em geral, as cenas tinham uma determinada configuração. No início do Programa, os adolescentes estavam desarrumados, despenteados e desleixados e o concluíam “bem arrumados”, ou seja, vestidos e penteados segundo os padrões socialmente aceitos como adequados.
Era também muito comum a forma utilizada pelo docente para a obtenção da transformação. Ou o docente demonstrava o que era um vestir correto (colocar a camisa para dentro das calças, abotoar a camisa, etc.) ou ele mesmo arrumava a roupa do adolescente.
Uma coisa e outra propiciavam uma interessante discussão a respeito dos objetivos e metodologia do Programa. A imagem mais freqüente e concreta do percurso do Programa estava intimamente relacionada ao conteúdo de uma Oficina de Apresentação Pessoal.
Pode-se dizer que as opções em torno da apresentação pessoal são paradigmáticas na objetivação da proposta de um Programa Educação para o Trabalho. É aqui que ele diz a que veio.
De um lado, estou face a um ser que se apresenta como fruto de sua classe social, de sua faixa etária, de seu grupo, de sua tribo, de sua incerteza, de sua ignorância, de seu saber, de suas convicções, de seu operar sobre suas próprias circunstâncias…
De outro lado, percebo e conheço (ou penso conhecer) os limites e as exigências do mercado de trabalho. Devo aproximar as distâncias? E, se devo, em que sentido e como agir?
Na formulação de um Programa de Educação para o Trabalho, clarear a proposta de apresentação pessoal é fundamental na transparência da proposta do próprio Programa.
Agora, seguindo o poema…
O poema de Manoel Bandeira intriga pelo que ele pode dizer a respeito de uma proposta para uma Oficina de Apresentação Pessoal. Como motivo do “adoro em ti”, o poema descarta, em primeiro, o da beleza. Contrapõe, também logo de princípio, a beleza que se mostra, a que se apresenta, com a interior e diz: “a beleza é em nós que ela existe”.
De um lado, está posta a beleza que de pronto se mostra ou que se busca no externo ou que se produz por fora. Uma apresentação pessoal, uma estética, que depende de uma intervenção externa sobre o vestir, o pentear, o cuidar da pele, o aparecer e o mostrar-se para o outro…Uma apresentação pessoal que depende de um saber, de um conjunto de formas determinadas pelos profissionais e agentes culturais da Moda e Beleza. Uma estética do trabalho aplicada à exterioridade dos corpos e determinada por regras das organizações (poder), em relação às quais cabe a submissão, a adaptação, o desvio, o embuste ou a recusa.
De outro lado, a beleza interior, a beleza pura. A aparência pessoal enquanto reflexo de uma individualidade ou de uma identidade que se expressa. Forma e conteúdo integrados. A forma como dependente e reflexo do conteúdo.
Mudanças na apresentação pessoal são correlativas de mudanças no ser. Interferir na apresentação pessoal implica em um trabalho com a identidade dos participantes.
Face a essas duas visões de beleza, qual o caminho do trabalho educativo? Ajustar e moldar os adolescentes ao saber e regras de apresentação pessoal dominantes? Isso parece ser possível e corresponde à primeira perspectiva de beleza e, por extensão, de apresentação pessoal. Mas, dentro da segunda perspectiva de beleza, tal proposta implica em ajustá-los como pessoas ao contexto do trabalho, tal como ele está hoje posto. Isso é válido? Quais as alternativas?
Incentivar a contestação e a rebeldia? Mantenha sempre o seu estilo, ou o da sua classe, ou o de seu grupo ou o de sua tribo. Seja você mesmo!
Pregar o disfarce, o embuste? Seja um ator! Assuma a roupa e aparência do personagem que você vai representar. Isso é um jogo! Jogue você também!
Ou trabalhar com a identidade: esperar que o amadurecimento traga a percepção de que é sábio adaptar-se. Ou facilitar a percepção que toda alternativa têm um custo e exige uma escolha? Apresentar todas as alternativas e deixar a opção a cada qual?
Apresentação Pessoal é só um Conceito…
O poema de Bandeira diz: “A beleza é um conceito”. E afirma ainda que a beleza é triste pelo que tem de fragilidade e incerteza. O conceito de beleza muda e ela mesma é transitória. O saber sobre a beleza muda em função, inclusive, dos interesses da indústria da moda.
No tempo, mudam também as regras organizacionais que definem o que é uma apresentação pessoal adequada. Por outro lado, tais regras variam de acordo com os ambientes e as circunstâncias. É frágil e incerto centrar-se todo um programa educativo em um saber tão mutável e em regras tão variáveis.
É frágil centrar o conteúdo da Oficina de Apresentação Pessoal sobre o saber da Moda e da Beleza. Mais incerto ainda é apoiá-lo sobre as regras organizacionais estabelecidas de apresentação pessoal. Isso é mais verdade se o saber e as regras forem restritos apenas aos que prescrevem o vestir, o pentear, o maquiar, o comportamento à mesa de refeição…
No poema, ao descartar a beleza, Manoel Bandeira enumera um conjunto de outros motivos de adoração e de encantamento: a inteligência; o espírito sutil, ágil e luminoso; a ciência do coração dos homens e das coisas; a graça musical, sempre renovada, que perturba e satisfaz; o profundo instinto maternal; a pureza, a impureza…
No desenho da Oficina de Apresentação Pessoal, esta também foi uma primeira opção pensada: a ampliação. Usar a idéia de estilo pessoal e, ao fazê-lo, ampliar tal concepção para além da roupa e do arrumar-se. Incluir, nessa ampliação, um variado leque de formas de apresentar-se: a postura corporal (a graça…), o uso da voz, a letra e a forma de escrever, o uso da norma culta, a face que se expressa…
Assim como no poema, por esse caminho também não se alcança um motivo adequado para Oficina. No mínimo, na base do conjunto das formas de apresentar-se ainda permanece a discussão já posta (aparência pessoal x ser essencial). Corre-se o risco de ampliar ainda mais a representação como forma de escamotear a opção de fundo.
As alternativas de desenho
Não se trata mais de formas determinadas, como no saber, nem de regras coercitivas, como no poder: trata-se de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência e ou estilos de vida (Deleuze, Gilles, Conversações, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p.123).
Para superar o dilema é preciso negá-lo. A superfície não se contrapõe à profundidade.
Em uma primeira possibilidade, no âmbito do saber, em vez de beleza pura ou beleza aparente, ambas ou nenhuma. Ver a possibilidade de participar e ver-se como participante do movimento de construção do conceito e do saber. Trata-se de fugir das formas determinadas do saber da Moda e da Beleza, entendendo a origem e os mecanismos de sua produção. Fugir através do vislumbre e da experimentação da possibilidade de produção autônoma, singular ou coletiva, dessas formas. Ou dito de outro modo, fugir através da experimentação da capacidade e da competência de produzir Moda e Beleza.
Na segunda possibilidade, em relação às regras organizacionais que definem a apresentação pessoal adequada, o mecanismo de superação do dilema (meu estilo x normas organizacionais) não pode ser similar. Na organização, ela como um todo, ou segmentos organizacionais específicos, ou um pequeno chefe definem a apresentação pessoal adequada.
É bom notar que isso não tem, necessariamente, nada a ver com as formas determinadas do saber de Moda e Beleza. A apresentação pessoal exigida é um exercício de poder que utiliza mas pode perfeitamente prescindir do saber estabelecido. E, é um exercício sutil de poder. Em uma organização cinzenta, mesmo o terno que ousa imprimir algum colorido pode ser discriminado.
Ao poder só existem as alternativas de submeter-se a ele, de detê-lo, de fugir dele ou de exercê-lo. Aqui, não existe uma estética e não se trata de construir um outro poder. No fugir e no deter, o saber produzir Moda e Beleza pode facilitar uma forma de resistência. Para tanto, esse saber deve ser estratégico, ou seja: utilizado para “incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável…”.
Essas ações sobre as ações organizacionais não configuram uma guerra ou uma fuga definitiva. São procedimentos de guerrilha contra as regras coercitivas da apresentação pessoal e da submissão dos corpos. Na medida em que o poder está sempre se reconstituindo, esta é uma batalha sem fim. Restariam então, como alternativas, a submissão ou a luta incessante.
Existe, no entanto, ainda uma terceira possibilidade. É aquela que transcende o mero estilo pessoal. O poema de Bandeira já a anunciava: “o que eu adoro em ti é a vida”. Foge-se do dilema criando um por fora das formas estabelecidas e da relação de forças.
“Não é mais o domínio das regras codificadas do saber (relação entre formas), nem o das regras coercitivas do poder (relação da força com outras forças), são regras de algum modo facultativas (relação a si): o melhor será aquele que exercer um poder sobre si mesmo. É isto a subjetivação: dar uma curvatura à linha, fazer com que ela retorne a si mesmo, ou que a força afete a si mesma. Teremos então os meios de viver o que de outra forma seria invivível” (Deleuze, op. cit, p.141).
A terceira possibilidade aponta para estimular os participantes na inserção em um processo de subjetivação: uma construção ética e estética de um modo de existência ou de um estilo de vida, o que é diferente da construção de um estilo pessoal. É a invenção de novas possibilidades, novos modos de existência. Um envolver-se apaixonado na criação de uma obra de arte: a própria vida.
Como conclusão, um concerto em si maior (em três movimentos)
“Que a vida de cada qual seja um projeto de casa. Seco, o projeto agride o olho da gente no papel, Porém quando a casa se agarra no lombo da terra, Ela se amiga num átimo com tudo o que enxerga em volta, Se adoça, perde a solidão que tinha no projeto, Se relaciona com a existência, um homem vive nela, E ela brilha da força do indivíduo e o glorifica.
(…)
Eu trago na vontade todo o futuro traçado! Não turtuveio mais nem gesto meu para indeciso! Passam por mim pampeiros de ambições e de conquistas, Chove tortura, estrala o mal, serenateia a alegria, Futuro está gravado em pedra e não se apaga mais! Por isso é que o imprevisto é para mim mais imprevisto, Guardo na sensação o medo ágil da infância, Eu sei me rir! eu sei me lastimar com ingenuidade!”
Mário de Andrade, Louvação Matinal, in: Andrade, Mário de, Poesias Completas, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1974, p. 194.
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Como conclusão prática da reflexão anterior, uma Oficina de Apresentação Pessoal, pode ser estruturada em três movimentos.
O primeiro movimento, abarcará o domínio das formas estruturadas do saber. Trata-se de desvendar o modo de construção do saber dominante sobre o tema, em contraposição ao saber do grupo de participantes, em um primeiro tempo. Esse desvendar será o mais amplo possível. Não basta pensar a Apresentação Pessoal como algo restrito ao vestir. As múltiplas formas do apresentar-se devem ser focadas. Os universos de saber dominantes da estética e expressão facial, da escrita (norma culta) e da caligrafia, do gesto e da expressão corporal, da fala e do tom e colocação da voz…podem ser explorados. Nesse mesmo tempo, os profissionais que trabalham com esses universos podem se identificados e caracterizados.
Em um segundo movimento e no primeiro tempo dele, caracterizar o poder e as regras coercitivas
em relação ao campo (Apresentação Pessoal, Moda e Beleza). Perceber o poder como relação de forças. Como algo que não tem um foco, algo que circula. Algo que não é só definido pela direção das organizações que podem ou não impor uma “estética do trabalho”. As normas coercitivas circulam pela organização como um todo e não estão necessariamente explícitas. É necessário extraí-las da cultura organizacional em ato. Em um segundo tempo, desenvolver projetos de ajustes específicos, de linhas de fuga ou de esquiva (centradas no saber antes desenvolvido) é um exercício importante para a percepção dos limites e possibilidades objetivas de transformação. Experimentar criações nos domínios da Apresentação Pessoal, Moda e Beleza. Perceber e testar as possibilidades criativas e os limites do campo.
O terceiro movimento tratará de incentivar a inserção de cada um e do grupo como um todo em um processo de subjetivação. Logo de início procurará identificar regras éticas e estéticas que configurem, ao longo da vida, um modo de existir no trabalho e um modo de viver o trabalho que seja apaixonante. Tais regras poderão abarcar o amplo leque das formas de apresentar-se, antes referidos, mas não devem ficar restritas a elas. Em um segundo tempo, do amplo conjunto de regras explorado, cabe uma escolha e uma escolha individual (regras facultativas). Tal escolha deverá contribuir para uma ampla revisão e ampliação dos planos de desenvolvimento pessoal e profissional, implícitos ou explícitos.
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