23 de dezembro de 2010

Viver: uma abordagem da relação homem e trabalho

 

Um filme: “Viver”, de Akira Kurosawa, introduz e permite um primeiro desenvolvimento do tema. Nele, em uma aparente contradição com o título, o titular de uma repartição burocrática japonesa nos anos 50, a Sessão de Cidadania, defronta-se com a morte. O filme começa mostrando o cotidiano de trabalho do funcionário. Permanentemente atrás de uma mesa, onde a papelada vai acumulando o protagonista rotineiramente despacha processos para as repartições supostamente competentes. Nada o afasta ou o retira do universo fechado da mesa e dos papéis. Uma redoma invisível o isola dos seus funcionários e dos problemas concretos, dos quais a papelada é apenas um reflexo. No filme, a apresentação do personagem diz: “está apenas preenchendo o tempo. Está sendo levado pela vida”.

Em uma cena, uma comissão de mulheres que reivindicam a construção de um parque é atendida por um subordinado do protagonista que as remete a uma sucessão de outras repartições, cada uma delas eximindo-se da responsabilidade pelo problema e encaminhando a comissão para o balcão de atendimento de outra sessão, onde a mesma situação se repete. Kanji Watanabe, o personagem em tela, durante o atendimento da comissão, nem sequer levanta os olhos tristes e desesperados do processo que examina. Apenas o final do expediente o retira de sua mesa e o remete para casa onde, solitário e silencioso, vive com o filho e a nora.

Um problema no estômago leva o Sr. Watanabe à procura de um médico. Após os exames ele constata estar com câncer e ter apenas aproximadamente 6 meses de vida. A perspectiva da morte próxima faz Watanabe rever sua vida. Próximo à aposentadoria e não tendo nunca faltado ao trabalho, repentinamente e sem explicações abandona a repartição. Retira parte de suas economias e começa a freqüentar bares e a vida noturna, a princípio em companhia de um boêmio e depois acompanhado por uma ex-funcionária da repartição, muito mais jovem do que ele, que tinha tido a coragem de abandonar um emprego estável e um trabalho que a entediava.

A moça irradia alegria de viver. Na noite e no espelho da juventude, Watanabe procura a si mesmo. Revê o passado e pergunta pelo sentido da vida. Como ele próprio diz: “Não entendo o sentido de todos esses meus anos de vida”. Relembra a morte da esposa e começa a atribuir a sua vida vazia ao sacrifício que fez para a criação do filho.

A companhia do Sr. Watanabe acaba não sendo agradável para a jovem. Uma noite, ela provoca uma discussão, tentando acabar com os insistentes convites de Watanabe para sair com ela. Durante a discussão, ao responder a uma pergunta sobre a sua alegria de viver, ela fala de seu novo trabalho em uma fábrica de brinquedos e da satisfação de saber que participa de um fazer que alegra as crianças. Mostra um brinquedo e diz: “Na verdade, faço brinquedos como esse. Mas é divertido. Sinto como se todos os bebês do Japão fossem meus amigos. Por que não faz algo assim?” Watanabe alega a impossibilidade de fazer algo significativo na repartição e ser muito tarde para mudar de emprego. Mas, de repente, os seus olhos se iluminam e ele diz: “Nada é tarde demais. Nada é impossível. Posso fazer algo se estiver determinado a fazê-lo!”. No dia seguinte retorna ao trabalho.

A sua transformação é notável. A perspectiva da morte o transforma. Desenterra o processo do parque. Entra em contato com a comissão de mulheres que o tinha originado. Paciente e perseverantemente, enfrenta os caminhos e entraves burocráticos para a aprovação do projeto. Acompanha a construção da praça. Na praça já concluída,  numa noite fria de nevasca, cantando docemente a canção que o acompanhou pelo filme inteiro e que diz:

“A vida é tão curta…

Apaixone-se querida…

Enquanto seus lábios têm cor,

E antes que a paixão termine,

Pois não haverá o amanhã.

A vida é tão curta…

Apaixone-se querida…

Enquanto seus cabelos são negros,

E antes que o fogo do amor se apague.”;

sentado em um balanço destinado às crianças usuárias, Watanabe morre.

Na cerimônia que sucede ao enterro, onde se come e se bebe muito, o seu feito é rememorado. O que intriga, sobremaneira, os seus pares e subordinados é a transformação de Watanabe. Após longo debate chegam à conclusão que ele sabia de sua doença e de sua morte iminente, por isso a mudança. De repente, alguém diz: ”Um dia morreremos também.” À reflexão que sucede à óbvia constatação da finitude de todos, juntos e já bêbados fazem um pacto de transformação de suas vidas no trabalho.

A cena final do filme é melancólica. Na repartição, com um novo chefe, a possibilidade de dar continuidade à transformação imprimida por Watanabe se apresenta. O novo chefe, embora participante do pacto, reage da maneira convencional e os demais também. O pacto está morto. Na cena observa-se, por parte de um único funcionário, um olhar de cobrança, um movimento corporal de indignação e, por fim, um último gesto de desengano e impotência. Tudo volta ao normal.

O filme contrapõe duas perspectivas de relação do homem com o seu trabalho. O início e o término mostram uma relação esvaziada de sentido. O trabalho alheio àquele que o executa, é visto como meio para fins exteriores a si mesmo: a sobrevivência, a criação dos filhos, a acumulação de uma reserva para a velhice, a obtenção de salários mais elevados, o exercício do poder, o exercer de um ritual imerso em um tempo despersonalizado, um despender de tempo e de vida ausente de alma e de paixão. A segunda visão de trabalho implica em laborar na direção de um projeto assumido e valorizado. Um valor que não se esgota em si, mas que articula o homem que trabalha com o outro e que vai de encontro a uma necessidade coletiva.

Há uma visão de servir e de sentir-se útil aí. Há uma música de criação e de solidariedade na praça recém-construída e embelezada pela neve que cai. É perceptível também, nessa segunda forma de trabalho, um contínuo trafegar entre o projeto e as capacidades e habilidades do homem que o persegue. Para a concretização do projeto é necessária a atualização do que há de melhor em Watanabe. O projeto solicita o que ele tem de melhor e no processo de concretização suas melhores qualidades são ainda desenvolvidas. Ao cabo, não resta apenas a praça, onde as crianças brincam, como testemunho da capacidade humana de criação e de transformação da natureza. Sobra, ao fim, um homem melhor. Um homem reconciliado com sua vida e com sua finitude.

O texto anterior foi retirado de  KÜLLER, J.A. Ritos de Passagem – Gerenciando Pessoas para Qualidade. São Paulo, Editora SENAC, 1996.


[1] Kurosawa, Akira, Viver, Toho, 1952, distribuído em vídeo por FJLucas Vídeo.

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