Nesta série de artigos, estamos apresentado uma abordagem educacional que acreditamos inovadora.
Já falamos dela em Aprendizagem criativa. Depois esboçamos sua proposta metodológica em Aprendizagem criativa – metodologia. Nos dois artigos seguintes escrevemos sobre as duas primeiras fases da metodologia: Aprendizagem Criativa – Focalização e simbolização e Aprendizagem criativa- a amplificação.
Em post anterior, iniciamos a discussão da terceira fase da metodologia: A Análise I: Falar e Ouvir . Nele afirmamos que a autonomia ou a busca da autonomia em direção a um funcionamento como grupo-sujeito é uma das condições requeridas pela fase de análise da Aprendizagem Criativa.
Formação e Desenvolvimento do Grupo – Sujeito
O que vai caracterizar um processo de singularização (que, durante certa época, eu chamei de “experiência do grupo sujeito”) é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global, a nível econômico, a nível do saber, a nível técnico, a nível das segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante (Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica – Cartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1993).
Desde o primeiro encontro, a contínua ampliação da autonomia grupal na definição de seus objetivos e das suas formas de funcionamento e avaliação é uma das bases da Aprendizagem Criativa. A autonomia é requerida para a ampliação das possibilidades de criação, incluindo a criação das formas de leitura e interpretação da situação grupal e a criação dos referenciais teóricos e práticos que sustentam a evolução da dinâmica do grupo.
1. Constituindo a equipe de trabalho
Na constituição do grupo-sujeito, a apresentação pessoal dos integrantes é a tarefa de facilitação mais imediata. É fundamental no início do grupo e na inclusão de um novo participante. A apresentação deve ser vista quase como um ritual de início dos processos de aprendizagem (cursos, encontros, oficinas etc.). No entanto não deve nunca ser concluída nessa fase e, sim, ser continuamente refeita e aprofundada.
Não é uma apresentação formal qualquer a que se propõe. Envolve, em especial, a visão de cada um sobre o significado do tema em estudo ou das competências em desenvolvimento. Requer um encontro e confronto dos valores com eles relacionados e dos resultados vislumbráveis a partir do momento e da situação em que se troca e se conversa.
Os grandes focos do curso ou encontro de aprendizagem ( objetivos, conteúdo, competências a desenvolver) são também os desse conversar e trocar inicial. Desta forma, a apresentação fornece um dignóstico sobre o estágio inical do grupo em relação ao tema a ser estudado ou da competência a ser desenvolvida. Nesse mesmo movimento, levanta-se a forma como o grupo gostaria de conduzir seu processo de aprendizagem.
É muito raro que o grupo deseje outra forma de funcionamento que não a de grupo-sujeito. Mas, para tanto, a linguagem verbal não deve ser a utilizada no início da conversa. É preciso confrontar os participantes com formas de expressão em que os maneirismos já desenvolvidos para esses momentos de apresentação não possam ser utilizados. É necessário usar formas de expressão que devolvam aos participantes a espontaneidade perdida. É produtivo já de início destruir as falsas defesas, os esteriótipos e os fomalismos típicos dos primeiros encontros.
A criação de uma situação inusitada de apresentação com o uso da arte tem-se mostrado eficiente na produção desses efeitos. Em próximo post publicaremos uma sessão de apresentação com essa característica.
2. Integrando a equipe
Tecendo a Manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a manhã”, in: Cabral – antologia poética, Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p. 17.)
É na trajetória de uma clara afirmação valorativa da autonomia de cada participante é que são propostas as atividades de apropriação do tema em estudo ou de desenvolvimento da competência desejada. Aí um galo sózinho não tece uma manhã. Aí se dialoga. Não se veiculam verdades prontas, teorias a-críticas, formas de fazer consagradas, ou requisitos sagrados oriundos de pessoas ou grupos egoístas e isolados. O saber é tecido a partir do canto (conhecimento expresso) de cada galo. As sinapses são negociadas, renegociadas ou estabelecidas por estados momentâneos de desejo, afeto ou afeição.
Feito o encontro e tecido o saber já existente no grupo, há um duplo retorno. Um deles debruça-se sobre essa construção tida como provisória, com o propósito de revisá-la e transformá-la. O outro questiona o saber já sedimentado sobre o tema ou as formas estabelecidas de fazer, tendo em vista a sua incorporação, transformação e recriação pelo confronto com o saber tecido no grupo.
É nesse debruçar repetido e autônomo sobre o desafio que constitui a tarefa de apendizagem que o grupo-sujeito vai se integrando em um compromisso com o aprender.
3. Ensaiando a orquestra
O título do tópico é relativo ao filme Ensaio de orquestra, de Fellini (Frederico Fellini, Ensaio de orquestra, RAI, distribuído em vídeo pela Globo Vídeo). O filme acompanha o ensaio de uma importante orquestra, regida por um maestro de renome internacional.
A orquestra não apresenta os costumeiros problemas relacionados com a redução da complexidade e desafio da atividade operacional. O ofício de músico mantém a complexidade e o desafio da aprendizagem e criatividade permanente. No filme percebe-se a relação amorosa do músico, como indivíduo, com sua arte e seu instrumento de trabalho.
Apesar disso tudo, no filme, o ensaio culmina em rompimento de todos os laços entre os integrantes da orquestra, em confusão, em tumulto, em violentas agressões, na revolta, na destruição ambiental e no caos.
O filme como um todo é um grande símbolo. Comporta então múltiplos significados. Mas, parecem centrais na geração da situação caótica: 1. a relação inadequada entre os músicos e entre os subgrupos ou naipes (cordas, metais, percussão…), o desrespeito e a competição, por exemplo, são claramente mostrados; 2. a relação de indiferença e até desprezo dos músicos para com a atividade que os une, ou seja, a música orquestral; e, finalmente, 3. na relação vertical e autoritária entre maestro e músicos. No filme, do caos brota o fascismo.
O filme é um antimodelo para as situações de ensaio. No ensaio, em direção ao grupo-sujeito, o conflito que surge do compromisso, da vontade de participação de cada um e do confronto das diferenças, não pode ser encoberto ou superado por um ato de autoridade ou do recurso à liderança do professor.
No prefácio à edição americana de O anti-Édipo, livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Michel Foucault considera-o um livro de ética e resume “as linhas de força daquele guia da vida cotidiana – contrário ao fascismo em todas as suas formas – em sete consignas principais:
1. liberar a ação política de toda a forma de paranóia unitária e totalizante;
2. alastrar a ação, o pensamento e o desejo por proliferação, justaposição e disjunção (e não por hierarquização piramidal);
3. libertar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta), investindo o positivo, o múltiplo, o nômade;
4. desvincular a militância da tristeza (o desejo pode ser revolucionário);
5. libertar a prática política da noção de Verdade;
6. recusar o indivíduo como fundamento para reivindicações políticas (o próprio indivíduo é um produto do poder);
7. desconfiar do poder” (Peter Pál Pelbart, “Estratégias para o próximo milênio”, Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 14 jun. 1996).
4. Desenvolvendo a equipe
Tais consignas podem, também, orientar as situações de ensaio e todo o processo de desenvolvimento do grupo-sujeito. Para utilizá-las, é necessário que o grupo use seu potencial criativo sobre a sua própria dinâmica. É necessário que o grupo invente e reinvente a sua própria organização e seu próprio funcionamento.
5. O grupo-sujeito
Nóis tamo aprendendo porque logo cada cabeça é um mundo. Na sua cabeça você traiz um mundo pra eu. Eu, na minha cabeça, dô outro mundo a você. Dentro dessa vida, cada um dia nóis se modifica. E, assim, vai virando os dia que nem vai virando um disco e nóis tem de todo dia vivê. Numa vida só, nóis vive muitas vidas. Porque eu tô com 54 anos e nesses 54 anos eu acho que eu já vivi muito mais do que 54 vida. Aprendi no tempo mesmo, não é? Aprendi na vida, pensando… Pensando na vida…(Fala de um campones do agreste pernambucano, extraída do documentário: Ó Xente, Pois não! Documentário produzido pela FASE.
Agora, o grupo-sujeito está constituído. Durante o processo foi necessário ir discutindo e definindo as formas de articulação interna. A proposta de autonomia foi vivida na própria carne. A organização interna do trabalho foi definida. As formas grupais de participação e de tomada de decisão foram definidas e mantidas ou transformadas.
No mesmo processo, formas de valorização e de avaliação grupal foram estabelecidas e utilizadas. Provavelmente valorizaram-se outras formas de avaliação externas ao grupo, além das do professor; praticou-se a auto-avaliação; experimentaram-se e fixaram-se formas de avaliação em grupo e intergrupos.
Isso tudo implicou olhar o pequeno e o grande do homem. Olhar no olhar do outro e se reconhecer como possibilidade e negação. Tudo foi e continuará sendo posto em questão.